Por Ariane Salomão |
Minha irmã tinha uma coleção de espelhos em seu castelo negro. Ela se admirava dia e noite naqueles espelhos, se gabando da juventude e da beleza. Havia um espelho, o Uróboro, como ela o chamava. Era velho mesmo quando éramos jovens. Uma janela para o mundo. Tudo podia ser visto, tudo podia ser contado pela superfície escura do espelho. Keir o possui, uma herança de sua casa. Tragam-no para mim. Esse é o meu preço. O Uróboro, e sou seu para que usem. Se conseguirem encontrar uma forma de me libertar.
O que Feyre, a protagonista de ACOTAR, série de romance de fantasia da autora Sarah J. Maas, não imaginava é que, para conseguir o espelho, teria que olhar para ele e encarar o que jamais imaginaria que veria.
O espelho era notório. Todos os filósofos conhecidos haviam refletido a respeito. Alguns tinham ousado encará-lo… e ficaram loucos. Outros tinham se aproximado e fugido de terror. Eu não consegui encontrar um relato de alguém que o tivesse conquistado. Enfrentado o que espreitava dentro do espelho e saído de posse do objeto
Quando Feyre chega ao espelho que tem a moldura de uma serpente que engole a si mesma, enxerga uma besta de pelos negros e dourados, com escamas e patas imensas. Com defeitos e, ao mesmo tempo, linda e feia, forte e fraca. Mas, não é o que ela vê que provoca em nós, leitores, um enigma, é o que ela sente. Ela chora, grita, quase enlouquece até que entende que a forma que vê é ela mesma.
Podemos puxar o Uróboro para um objeto da realidade usado por nós, psicanalistas, o Divã. Embora não haja um reflexo, há o vazio encarado pelo analisante através de todo o percurso e manejo. Quando nos procura você vem com uma demanda e pode descobrir neste processo que muitas das respostas demandam mais perguntas.
Pode descobrir que não é tão bom quanto parece, quanto se vende. Pode acordar de uma mentira em que é o próprio mentiroso (autor Darci Martins). Se vê diante de sua insignificância e traz novos significantes à mesa.
Entende que sua arrogância é fruto de sua pequenez ou que sua pequenez é fruto de sua arrogância.
Enxerga nuances e compreende que ser humano não é ser bom, nem mau, é ser incompleto, ser vazio, e encontra neste duro real o enigma para criar a sua própria verdade e o poder de escolher entre fugir de seu reflexo ou ficar, como Feyre.
Queria ver se você era digna de ser ajudada. É raro uma pessoa encarar quem realmente é e não fugir, não ser destruída por isso. É o que o Uróboro mostra a todos que o buscam: quem são, cada centímetro desprezível e profano. Alguns olham para o espelho e nem percebem que o horror refletivo são eles, mesmo que o terror os deixe loucos. Alguns entram com arrogância e são arrasados pela pequena criatura medíocre que encontram no lugar. Mas você… Sim, de fato é rara. Eu não poderia arriscar deixar esse lugar por menos.
Apenas eu poderia permitir que a parte ruim me destruísse. Somente eu poderia assumi-la, abraçá-la.
Bibliografia:
MAAS, Sarah J. Corte de asas e ruína. Trad. Mariana Kohnert. Vol. 3 da série Corte de espinhos e rosas. Rio de Janeiro: Galera Record, 2017.
Foto capa: bookartby_amai